Relato de Blimunda
Os
meses foram passando na quinta de S. Sebastião da Pedreira. Agosto chegara ao
fim. Setembro ia a meio, e nenhuma notícia tinha chegado. Encerrados na quinta
do duque de Aveiro, Baltasar e eu assistíamos, impacientemente, ao passar dos
dias. Vários sóis e luas contados, tantos mais quantos aqueles que nos servem
de alcunha. Enfim, nenhuma novidade sobre o padre Bartolomeu chegou, nem tão
pouco sobre o tão esperado dia, o dia em que voaríamos. A espera ansiosa
mantinha-se, até que, num belo dia em que o céu parecia limpo e o sol brilhava
(não tanto como os sete sóis do meu querido Baltasar... Ai! Meu querido
Baltasar...), o padre apareceu na quinta.
Pusemos a hipótese de que fosse el-rei que
vinha ao nosso encontro para assistir ao levantamento da nossa obra, onde
depositámos tanto esforço e dedicação, mas não, era o padre Bartolomeu Lourenço
que, agora, se encontrava ali diante de nós, pálido e cinzento. “O que
aconteceu?”, “Onde está el-rei?”, “Não voaremos?”. Foram estes os pensamentos
que me ocorreram quando vi o padre naquele estado, mas, antes mesmo de ter tempo
de ponderar sobre o assunto, ele gritou “Temos de fugir!”. Naquele momento,
pensei que fosse o fim, o fim da Santíssima Trindade, o fim do fruto da nossa
união, o fim do sonho de voar. “O Santo Ofício anda à minha procura, querem
prender-me, onde estão os frascos?”. Fiquei tão assustada, naquele momento, que
apenas tive tempo de agarrar nos frascos com as vontades todas que recolhera,
duas mil, contei eu (sabe Deus o que me custou, quase a minha vida!).
“Que faremos?”, repetia,
ansiosamente, o meu amado Baltasar, desesperado por uma resposta do padre:
- “Vamos fugir na máquina”.
E assim foi. Duas horas foi o tempo necessário
para preparar tudo: retirar as telhas da abegoaria, verificar o estado das
velas, preparar alguma comida para a viagem. O cravo do senhor Scarlatti ali
ficou, com muita pena minha, e certamente dele. Minha por poder não voltar a
ouvir a sua melodia, aquela que não se equiparava a mais nenhuma, dele por não
poder tocar nos céus, como tanto desejava. Tudo preparado para levantar voo.
Baltasar segurava a corda com que se fechariam as velas, mas não reagia, talvez
por insegurança. Aproximei-me, coloquei as minhas mãos sobre a dele e, juntos,
puxámos a corda. Os raios do sol incidiam sobre as bolas de âmbar e tudo
começou a funcionar como uma melodia (se ao menos estivesse lá o senhor
Scarlatti...), o sol atraía o âmbar, o âmbar atraía o éter (tanto trabalho
tivemos para o conseguir arranjar), o éter, por sua vez, atraía os ímanes e
estes as lamelas de ferro. A passarola estremeceu, começámos a afastar-nos da
abegoaria a uma velocidade incrível, suficiente para nos deitar ao chão, a mim
e a Baltasar. Pouco tempo depois, já não se distinguia a quinta, que se perdia
entre as colinas, apenas Lisboa, o rio, o mar, aquele que fascinava tanto o
padre Bartolomeu (ninguém imagina as saudades que eu tenho daquele homem, do
brilho dos seus olhos perante esta obra tão grandiosa, da sua capacidade
ilimitada de sonhar...). “Blimunda e Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não
tenham medo” foram as palavras do padre, nunca o tinha visto tão feliz.
Percorria o convés da máquina para poder ver as maravilhas do mundo em todas as
perspetivas possíveis, quer fosse a oeste, este, sul ou norte, quem sabe em
busca de uma estrela que o guiasse! O seu sonho era, agora, não mais que a sua
realidade e, por isso mesmo, ninguém lha podia tirar, nem mesmo o Santo Ofício.
Baltasar e eu levantámo-nos, fascinados com o
que víamos, com o brilho do sol que irrompia pelo convés, com o som do vento,
com aquela sensação de leveza. O meu querido Sete-Sóis abraçou-se a mim,
beijou-me e começou a chorar, talvez a emoção de ter conseguido alcançar um
objetivo, tão cobiçado há tantos anos, o tenha consumido por completo, mais do
que as lembranças que tinha da guerra (se ao menos o pudesse abraçar mais uma
vez...).
Adiante, o padre Bartolomeu
de Gusmão (assim ele gostava que o chamassem), abriu as velas de maneira a que
parte das bolas de âmbar estivessem à sombra e a máquina começasse a descer.
Para além da paisagem maravilhosa que era observada de lá de cima, era possível
ver o Terreiro do Paço, onde, naquele momento, iam entrando os familiares do
Santo Ofício em busca de prenderem o padre, em busca de acabarem com o seu
sonho de ser reconhecido por todos aqueles que eram dados às artes, em busca de
darem um fim à sua dedicada caminhada, em busca de darem um fim à sua vida.
Tudo corria pelo seguro, até que, de repente, o sol pôs-se e a máquina, sem o
“combustível” tão necessário, começou a cair de uma forma tão violenta! O vento
lançava a máquina para a frente, ao ponto de já não se distinguir Lisboa no
horizonte. A velocidade ia aumentando enquanto o pânico se instalava no convés
da passarola. Antes de acontecer aquilo que mais temíamos, avistámos, ao longe,
as obras do convento e Baltasar percebeu logo que estaríamos a sobrevoar a
terra onde tinha nascido e crescido.
O sol já se preparava para
dormir, enquanto a lua se preparava para brilhar. Era impossível fugir da
noite, o nosso destino estava traçado, era óbvio que o nosso fim estava
próximo. Agarrei numa das esferas que continha parte das vontades e Baltasar
envolveu o seu corpo na outra esfera, que continha a outra tanta parte.
Felizmente foi o que nos valeu. A máquina conseguiu aterrar devagar, graças a Deus,
ou graças a nós. Ninguém ficou ferido, apenas estávamos exaustos. Mais tarde,
após termos descansado e reposto as nossas energias, observámos que o padre não
estava bem, pois a sua obsessão em relação ao Santo Ofício tinha-o deixado
alterado. Coitado, já não era o mesmo. Baltasar e eu tentámos descansar da
longa viagem, mas não conseguíamos, sequer, abstrairmo-nos, por um segundo que
fosse, daquela grande aventura. Durante a madrugada, acordámos sobressaltados
com o barulho das chamas. Era o padre que tinha pegado fogo à passarola. Não
queríamos acreditar naquilo que os nossos olhos viam. Depressa reagimos e
conseguimos salvar das chamas o nosso invento.
O padre desapareceu por
entre as moitas e nunca mais tivemos notícias dele. Bartolomeu Lourenço de
Gusmão, era este o seu nome, ajudou-nos, a mim e a Baltasar, quando mais
precisámos, casou-nos num ritual à altura do nosso amor e, acima de tudo,
deu-nos um motivo para viver.
Rita Ribeiro, 12º C1
Sem comentários:
Enviar um comentário