domingo, 2 de abril de 2017

O Voo da Passarola




Relato de Blimunda

Os meses foram passando na quinta de S. Sebastião da Pedreira. Agosto chegara ao fim. Setembro ia a meio, e nenhuma notícia tinha chegado. Encerrados na quinta do duque de Aveiro, Baltasar e eu assistíamos, impacientemente, ao passar dos dias. Vários sóis e luas contados, tantos mais quantos aqueles que nos servem de alcunha. Enfim, nenhuma novidade sobre o padre Bartolomeu chegou, nem tão pouco sobre o tão esperado dia, o dia em que voaríamos. A espera ansiosa mantinha-se, até que, num belo dia em que o céu parecia limpo e o sol brilhava (não tanto como os sete sóis do meu querido Baltasar... Ai! Meu querido Baltasar...), o padre apareceu na quinta.
 Pusemos a hipótese de que fosse el-rei que vinha ao nosso encontro para assistir ao levantamento da nossa obra, onde depositámos tanto esforço e dedicação, mas não, era o padre Bartolomeu Lourenço que, agora, se encontrava ali diante de nós, pálido e cinzento. “O que aconteceu?”, “Onde está el-rei?”, “Não voaremos?”. Foram estes os pensamentos que me ocorreram quando vi o padre naquele estado, mas, antes mesmo de ter tempo de ponderar sobre o assunto, ele gritou “Temos de fugir!”. Naquele momento, pensei que fosse o fim, o fim da Santíssima Trindade, o fim do fruto da nossa união, o fim do sonho de voar. “O Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me, onde estão os frascos?”. Fiquei tão assustada, naquele momento, que apenas tive tempo de agarrar nos frascos com as vontades todas que recolhera, duas mil, contei eu (sabe Deus o que me custou, quase a minha vida!).
“Que faremos?”, repetia, ansiosamente, o meu amado Baltasar, desesperado por uma resposta do padre:
- “Vamos fugir na máquina”.
 E assim foi. Duas horas foi o tempo necessário para preparar tudo: retirar as telhas da abegoaria, verificar o estado das velas, preparar alguma comida para a viagem. O cravo do senhor Scarlatti ali ficou, com muita pena minha, e certamente dele. Minha por poder não voltar a ouvir a sua melodia, aquela que não se equiparava a mais nenhuma, dele por não poder tocar nos céus, como tanto desejava. Tudo preparado para levantar voo. Baltasar segurava a corda com que se fechariam as velas, mas não reagia, talvez por insegurança. Aproximei-me, coloquei as minhas mãos sobre a dele e, juntos, puxámos a corda. Os raios do sol incidiam sobre as bolas de âmbar e tudo começou a funcionar como uma melodia (se ao menos estivesse lá o senhor Scarlatti...), o sol atraía o âmbar, o âmbar atraía o éter (tanto trabalho tivemos para o conseguir arranjar), o éter, por sua vez, atraía os ímanes e estes as lamelas de ferro. A passarola estremeceu, começámos a afastar-nos da abegoaria a uma velocidade incrível, suficiente para nos deitar ao chão, a mim e a Baltasar. Pouco tempo depois, já não se distinguia a quinta, que se perdia entre as colinas, apenas Lisboa, o rio, o mar, aquele que fascinava tanto o padre Bartolomeu (ninguém imagina as saudades que eu tenho daquele homem, do brilho dos seus olhos perante esta obra tão grandiosa, da sua capacidade ilimitada de sonhar...). “Blimunda e Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenham medo” foram as palavras do padre, nunca o tinha visto tão feliz. Percorria o convés da máquina para poder ver as maravilhas do mundo em todas as perspetivas possíveis, quer fosse a oeste, este, sul ou norte, quem sabe em busca de uma estrela que o guiasse! O seu sonho era, agora, não mais que a sua realidade e, por isso mesmo, ninguém lha podia tirar, nem mesmo o Santo Ofício.
 Baltasar e eu levantámo-nos, fascinados com o que víamos, com o brilho do sol que irrompia pelo convés, com o som do vento, com aquela sensação de leveza. O meu querido Sete-Sóis abraçou-se a mim, beijou-me e começou a chorar, talvez a emoção de ter conseguido alcançar um objetivo, tão cobiçado há tantos anos, o tenha consumido por completo, mais do que as lembranças que tinha da guerra (se ao menos o pudesse abraçar mais uma vez...).
Adiante, o padre Bartolomeu de Gusmão (assim ele gostava que o chamassem), abriu as velas de maneira a que parte das bolas de âmbar estivessem à sombra e a máquina começasse a descer. Para além da paisagem maravilhosa que era observada de lá de cima, era possível ver o Terreiro do Paço, onde, naquele momento, iam entrando os familiares do Santo Ofício em busca de prenderem o padre, em busca de acabarem com o seu sonho de ser reconhecido por todos aqueles que eram dados às artes, em busca de darem um fim à sua dedicada caminhada, em busca de darem um fim à sua vida. Tudo corria pelo seguro, até que, de repente, o sol pôs-se e a máquina, sem o “combustível” tão necessário, começou a cair de uma forma tão violenta! O vento lançava a máquina para a frente, ao ponto de já não se distinguir Lisboa no horizonte. A velocidade ia aumentando enquanto o pânico se instalava no convés da passarola. Antes de acontecer aquilo que mais temíamos, avistámos, ao longe, as obras do convento e Baltasar percebeu logo que estaríamos a sobrevoar a terra onde tinha nascido e crescido.
O sol já se preparava para dormir, enquanto a lua se preparava para brilhar. Era impossível fugir da noite, o nosso destino estava traçado, era óbvio que o nosso fim estava próximo. Agarrei numa das esferas que continha parte das vontades e Baltasar envolveu o seu corpo na outra esfera, que continha a outra tanta parte. Felizmente foi o que nos valeu. A máquina conseguiu aterrar devagar, graças a Deus, ou graças a nós. Ninguém ficou ferido, apenas estávamos exaustos. Mais tarde, após termos descansado e reposto as nossas energias, observámos que o padre não estava bem, pois a sua obsessão em relação ao Santo Ofício tinha-o deixado alterado. Coitado, já não era o mesmo. Baltasar e eu tentámos descansar da longa viagem, mas não conseguíamos, sequer, abstrairmo-nos, por um segundo que fosse, daquela grande aventura. Durante a madrugada, acordámos sobressaltados com o barulho das chamas. Era o padre que tinha pegado fogo à passarola. Não queríamos acreditar naquilo que os nossos olhos viam. Depressa reagimos e conseguimos salvar das chamas o nosso invento.
O padre desapareceu por entre as moitas e nunca mais tivemos notícias dele. Bartolomeu Lourenço de Gusmão, era este o seu nome, ajudou-nos, a mim e a Baltasar, quando mais precisámos, casou-nos num ritual à altura do nosso amor e, acima de tudo, deu-nos um motivo para viver.


Rita Ribeiro, 12º C1

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