Caderno Pessoal
CARLOS EDUARDO DA MAIA
Lisboa,
17 de novembro de 1875
Caro
Diário
Escrevo-te
à luz trémula de uma vela, a uma hora alta da madrugada. O dia de hoje
pareceu-me ter durado toda uma vida, de tão extenso e exaustivo que foi. Tal
como todos os outros dias da minha vida, teve os seus altos e baixos. Contudo,
foram os altos que me deixaram voar sobre os homens, como uma ave livre e
majestosa, e foram os baixos que me deixaram contactar com as profundezas mais
obscuras do Inferno.
Por
onde começar? Talvez a ordem cronológica fosse a mais indicada para esta
narração. Bem, de manhã, enquanto pensava nela,
vieram ter comigo o Vilaça e o avô, que me deram notícias e convites aos quais
não prestei atenção. Acho que os Gouvarinhos me convidaram para um jantar na
casa deles… De qualquer modo, não sei se irei. A condessa não me deixa em paz.
Depois, chegou o João, com as suas ideias loucas. Queria uma espada para levar
à soirée dos Cohens. Enfim, lá tive
de lhe conceder o favor. Afinal, para que servem os amigos?
Então,
antes que eu pudesse sair, apareceu o Dâmaso, num verdadeiro estado de pânico.
Ver aquela figura gorda e esbaforida, em pânico, a esbracejar, chamando-me,
abriu-me um pequeno sorriso na cara. Ele precisava de ajuda. Bem, não era ele.
Era a filha dos Castro Gomes. Era a filha dela,
a menina Rosa. Partimos para o Hotel Central, com o Dâmaso a falar dos assuntos
dele e comigo a fingir que prestava atenção. Ela era mais importante. Estaria ela lá? Não, segundo o que me
disse o Dâmaso. Todavia, valia a pena fazer a visita, pois podia ficar a
conhecê-la um pouco melhor.
Quando
lá chegámos, fomos cumprimentados por Miss Sara, muito simpática mas nervosa
com Rosicler. Ainda antes de tratar da menina doente, reparei no quarto dela. Acho que nunca me senti tão… apaixonado?
Será esta a expressão certa? Talvez apenas quando a vi pela primeira vez me tenha sentido melhor. É um sentimento
estranho, de familiaridade incógnita, como se me parecesse conhecê-la, apesar
de nunca ter falado com ela. Ela é tão
perfeita que o seu casaco se ajusta
às suas formas como uma luva de seda numa delicada mão. É este o sentimento que
tenho por ela? Como é que esta mulher
me pôde enfeitiçar, me pôde deixar neste estado romântico tão debilitante e assustador?
Sinto que não consigo desviar o pensamento dela, sinto que a vejo em todas as
pessoas que cruzam a esquina, que saem das tipoias, que entram nas lojas…
Enfim! Sinto-me receoso… Se eu não a conhecer… Como é que irei ultrapassar essa
dor? Sinto-me estranho, diferente… Não me sinto como sendo eu mesmo!
Depois de ter tratado Rosicler, que se mostrou
uma menina muito simpática e engraçada, com uns olhos azuis muito diferentes
dos do Castro Gomes e dos dela…, voltei
para casa com o Dâmaso, que me deu a melhor notícia do dia: o brasileiro ia
voltar para a sua pátria, e ia deixá-la com
a filha e as criadas. Oh, que bela oportunidade! Qual seria a melhor altura
para a conhecer?
Despedi-me
do Dâmaso e vim para casa. Afinal, hoje era a soirée dos Cohens e tinha de ir vestido a rigor. Decidi
disfarçar-me de dominó, um clássico intemporal. Quando estava a sair, eis que
vejo a figura mais triste e cómica dos últimos tempos: Mister João da Ega, disfarçado de Satanás, ou Mefistófeles, com
vestimenta vermelha e com uma cara ainda mais vermelha e triste devido ao choro.
O
Ega chorava porque tinha sido humilhado na casa dos Cohens. Afinal, o Cohen
descobriu que ele e a sua mulher, Raquel, tinham uma relação amorosa, e
expulsou-o à bengalada. Ele estava completamente desolado e, ora se dava por
derrotado e destruído, ora jurava morte ao Cohen por tê-lo humilhado. O certo é
que a reputação dele foi arrasada com este incidente. Fomos cear a casa do
Craft, pois de certeza que ele tinha bons conselhos a dar. Ele disse-nos que
devíamos esperar e ver o que o Cohen fazia: quem tinha cometido o erro era o
João e não o marido traído. Depois da ceia, ficou claro que o João tinha bebido
um pouco de vinho a mais, pelo que o deixei em casa do Craft em vez de o trazer
para a Vila Balzac. Acho que ele também não iria gostar de voltar para casa – a
casa dos Cohens era em caminho e o comportamento daquele diabo bêbedo era
imprevisível.
Por
isso, vim sozinho para o Ramalhete e aqui me encontro, diante de ti, a
relatar-te tudo o que aconteceu hoje. Acho que o dia de amanhã me reserva mais
trabalhos e surpresas – tenho de ir buscar o Ega a casa do Craft, para ver se
descobrimos o que o Cohen quer e para ver, afinal, o que aconteceu. Pode ser
que ele se torne racional depois da tristeza e do álcool. Agora, acho que me
vou recolher à cama. Começo a pensar nela
outra vez. Vou sonhar com ela hoje,
certamente.
Carlos
da Maia
Pedro Silva, 11º C1
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