Trazendo à superfície as memórias das minhas
primeiras experiências de leitura, relembro os seus contornos particulares,
desenhados por contingências económicas, geográficas e sociais.
Cresci no espaço livre da aldeia, no qual não havia
limites para as tropelias e correrias da infância e onde a imaginação não
encontrava barreiras para as suas deambulações, pulando constantemente as
fronteiras do tempo e do espaço, fora das quais as aventuras sonhadas pareciam
ganhar a possibilidade de se tornarem realizadas.
No contexto tão apertado da
aldeia, mas tão alargado pelas múltiplas vias da fantasia, apresentava-se como
um grande acontecimento a passagem de uma biblioteca itinerante, que pertencia à
Gulbenkian. A vinda periódica do mágico veículo de caixa fechada (recheada com o tesouro do seu espólio livresco) era
aguardada com as palpitações que sempre caracterizam a expectativa dos
encontros longamente acalentados! A sua cor de prata iluminava os caminhos,
sendo vista como um fascínio para o olhar. Os primórdios da minha relação com os livros foram, assim, marcados por
essa visita que parecia servir o propósito de saciar a fome de aventuras,
acenando com o mundo distante da civilização. A criançada celebrava
invariavelmente a chegada da biblioteca com o despique de uma corrida, movida
pela ânsia da proximidade com os livros, que satisfazia o desejo de tocar,
cheirar e folhear. Os adolescentes que estudavam na cidade próxima eram presenças reconhecidas no instante da sondagem dos apetecidos conteúdos. Sucedia-se,
depois, o momento de uma escolha forçosamente criteriosa, condicionada pelo
número limitado de obras que se podiam requisitar. Valia o espírito de partilha
sustentado pelos leitores, que fazia circular, de mão em mão, os apetecidos
tesouros, até que se cumprisse o ritual de uma nova visita do acarinhado
veículo.
As
experiências dessas leituras foram abrindo caminhos a quem tinha sido dado o
privilégio da alfabetização e enchia a sua mente com fantasias que exprimiam a
fome pela exploração do mundo que se idealizava para além dos horizontes
limitados da aldeia. Sem dúvida que foram experiências decisivas, formadoras de
um substrato sólido que haveria de constituir alicerces para quem se lançou na
busca de viagens reais, através das posteriores deambulações pela cidade, que
tinha nas suas escolas e universidades a oferta iniciática das múltiplas
possibilidades abertas pela via do conhecimento, cuja conquista se empreendeu.
Nesse passado ainda tão recente, o livro era visto como um objeto de
contornos sensuais, cujo interior apetecia desnudar até às entranhas, para se
devassarem os seus misteriosos segredos, coloridos pelo intrigante delírio da imaginação. Num tempo em que as vivências juvenis eram rigorosamente contidas,
o livro possibilitava o questionamento de uma saber demasiado empírico e uma
evasão saudável do mundo obsoleto dos preconceitos, para se aceder à fruição de
experiências libertadoras.
Tal como hoje, havia os autores de renome,
cuja leitura era lei, alimentando-se um considerável apreço pela instrução,
trampolim para um mundo mais iluminado e a fervilhar de civilização. Citando
nomes portugueses, é forçoso relembrar Alexandre Herculano, Almeida Garrett,
Alves Redol, Antero de Quental, Aquilino Ribeiro, Bernardim Ribeiro, Bocage,
Camilo Castelo Branco, David Mourão Ferreira, Eça de Queirós, Fernando Namora,
Ferreira de Castro, Júlio Dinis, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Migueis,
Miguel Torga, Natália Correia, Raul Brandão, Virgílio Ferreira, Vitorino
Nemésio e tantos outros, numa sequência interminável, de A a Z, que eram
referência obrigatória nas prateleiras das bibliotecas.
Mais tarde, numa apetência pela literatura estrangeira, outros nomes se
afirmariam, por exemplo dos ilustres autores russos como Dostoievski, Máximo
Gorki ou Tolstoi (pela ordem referida, do arquivo da minha memória soltam-se
títulos como Os Demónios, A Mãe e o eternamente célebre Ana Karenina). Enfim, viria, ainda, o
interesse por autores franceses como Flaubert, com o realismo de Madame Bovary, Vítor Hugo, com os
romances Os Miseráveis e Notre Dame de Paris, Proust e o seu
interminável Em busca do tempo perdido…
Incluído nesta nacionalidade, é claro que seria imperdoável a não referência ao
intemporal Júlio Verne, pai da ficção científica, que continua a percorrer o
mundo com as suas Vinte Mil Léguas
Submarinas ou A Viagem ao Centro da Terra. Merecem, também, realce
autores ingleses como Shakespeare, com Romeu
e Julieta, e autores americanos como James Joyce, Somerset Maughan e
Hernest Hemingway. Continuando a lista, é inevitável acrescentar-se o
colombiano Gabriel Garcia Marques, com o romance Cem Anos de Solidão.
As experiências da leitura
preenchiam as conversas de café e de convívio na intimidade das casas,
constituindo motivo de orgulho para quem as podia documentar, já que, naquela
época, o livro era uma preciosidade de difícil acesso a quem se via afastado
dos meios culturais por onde circulavam as elites intelectuais.
Entretanto,
a televisão invadiu a intimidade das casas, com as inúmeras ofertas de
coloridas atrações, trazendo o contacto com o mundo distante que outrora apenas
se conseguia idealizar. Depois, o computador também se instalou no espaço rural,
afirmando-se como um intruso que contribuiu para cavar um fosso entre gerações.
Na verdade, se no passado os mais jovens não dispensavam a sabedoria dos
adultos, transmitida através das histórias que perspetivavam saídas para o
mundo desconhecido, a internet acabou
por se oferecer como uma implacável rival, numa exigência de atenções que
conduziram os idosos à solidão e os jovens à desumanização.
Atualmente, os caminhos asfaltados da aldeia já não oferecem mais a visão
romântica dessa biblioteca andante, que proporcionava, de um modo tão generoso,
as viagens mais longas a que o ser humano pode aceder, pelas vias intermináveis
da imaginação! E o livro, objeto de contornos sensuais, aparentemente tem vindo
a perder poder na sua disputa com os meios audiovisuais. Contudo, também parece
ter-se tornado consensualmente aceite que este sensual tesouro não pode, de
modo algum, ser dispensável, tanto na cidade como nestes locais onde a
mãe-natureza nos envolve no seu silêncio acolhedor, apenas cortado pelo som dos
ribeiros, o sopro do vento nos arvoredos ou a melodia do canto das aves. Se, nos
ambientes ruidosos, a leitura pode constituir um escape saudável, também quando
estamos mergulhados no silêncio bucólico nos sentimos tentados a ceder à magia
de um livro, fazendo dele um amigo inseparável, nessas horas de profundo
recolhimento, repouso e descontração.
Sem dúvida que o livro será sempre uma oferta de prazer insubstituível,
pela abertura à satisfação do instinto da curiosidade, desfiar de folhas que se
deixam vencer pelo desejo de descobrir. O seu manancial persiste inesgotável,
mesmo depois de todas as saídas, reais e virtuais, possibilitadas pela abertura
das autoestradas da informação.
Por isso se justifica que se lance o desafio dos livros à nova geração,
como um inesgotável e insubstituível arquivo do saber, para momentos de estudo
e de lazer. (Num reconhecido aparte, é oportuna a referência ao contributo que
o CONTRATO DE LEITURA tem vindo a prestar nas escolas, assim como a
implementação dos CLUBES DE LEITURA, para que se possa sustentar e levar avante
esse desafio).
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