quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

DO CACÉM PARA O MUNDO




Hoje é sexta-feira, faltam dez minutos para as oito da manhã e estou a caminho da escola. Sopra um vento frio e cortante. Desço o viaduto que me separa do Cacém. Esta rua, batizada com o nome de Luís Lázaro Zamenhof, criador do Esperanto, tal como ele tem a intenção de juntar extremos, sendo o elo de ligação entre dois lados.
A ponte, pintada de vermelho, dá-me uma perfeita visão não só do IC-19 (outro destes "elos de ligação"), por onde os carros passam, mas também de uma boa parte dos prédios variadíssimos que compõem o cenário da cidade. Vislumbram-se prédios velhos e escurecidos pelo tempo, mas também prédios em melhor estado, autênticos titãs de tijolo e de betão armado. Por detrás de cada uma das janelas, esconde-se uma vida, uma história, uma ideia, um pensamento, memórias... As memórias de quem não conheço (por exemplo dos que se erguem no quinto andar, por cima do Centro Comercial Satélite, ou no primeiro andar, mesmo em frente da estação dos comboios) passam-me pela cabeça e, de repente, imagino-me uma dessas pessoas. Os prédios têm sete, oito, nove, dez andares, mas, para mim, é como se tivessem cento e vinte, pois o conteúdo que se oculta por detrás das suas fachadas nunca poderá ser captado por qualquer livro, narração, comentário ou instantâneo fotográfico.
Daqui até ao cimo da Avenida dos Bons Amigos, a arquitetura é dominada pela irregularidade de desenhos dos edifícios e do tipo de casas comerciais que aí se alojam. Mercearias étnicas, pastelarias, lojas de conveniência, tabacarias, papelarias, quiosques, cabeleireiros, oculistas, agências de viagens, bijuterias, bazares, ourivesarias, lojas de penhores, consultórios médicos, dentistas, prontos-a-vestir e sapatarias ladeiam as ruas da grande baixa cacenense, desde o cimo do Mercado Municipal (agora branco, mas ainda "amarelo" nas nossas memórias) até à área de serviço ao cimo da Avenida dos Bons Amigos e à rotunda dos Quatro Caminhos.
Agora que já estou junto à rotunda, passo sobre a Ribeira das Jardas, nome dado à ribeira de Barcarena. Vejo um pato a nadar sobre a água e detenho-me na contemplação de dois senhores de idade, sentados em bancos, frente a frente, lendo o jornal do dia e falando sobre algo que só conseguiria compreender se estivesse junto deles. Uma mulher empurrando um carrinho de bebé passa no jardim, em direção à estação, contornando a rotunda que ladeia a velha ribeira. Todos nós somos água (setenta por cento) e o Cacém é prova disso, construído junto a esta ribeira antigamente tão importante para a economia local e agora um belo local de passagem.
Atravesso a estrada com o sinal vermelho (tradição nova-iorquina, embora eu more no Cacém), pensando na maravilha de haver uma margem de erro para peões e condutores, neste grande centro populacional com uma organizada regulação do tráfego. Encaminho-me para a escola, por debaixo do caminho-de-ferro onde se cruzam comboios vindos de Sintra para Lisboa ou de Lisboa para Sintra, e, ocasionalmente, com destino para as Caldas da Rainha, Figueira da Foz, Coimbra ou um pouco mais além.
O Cacém, tal como a rua Luís Lázaro Zamenhof ou o IC-19, é também um elo de ligação, neste caso entre a fantasia romântica e parada no tempo da vila de Sintra e o resto do Mundo para onde se pode viajar a partir de Lisboa, apanhando os seus comboios, autocarros, elétricos, aviões, paquetes e cruzeiros. Quando passo junto à linha dos comboios, penso quão fácil é sair do Cacém e, simultaneamente, quão difícil é expulsá-lo de mim, porque, para mim, esta cidade é tudo.
No fundo, também passar no Cacém é ficar e sair do Cacém. Confluência de culturas e gerações - senhoras muito idosas à porta da papelaria, vendo as capas das revistas e conversando, pais e mães à espera de ser atendidas no centro de saúde, com bebés ao colo que choram sem saber porquê, jovens que veem algo no telemóvel, distraidamente, encaminhando-se para a estação, pessoas com auscultadores nos ouvidos, tentando abafar o ruído -, o Cacém é um caldeirão onde todos influenciam e são influenciados, contactando, mesmo involuntariamente, com costumes radicalmente diferentes dos seus.
Subo, agora, a Avenida dos Bons Amigos e vejo quatro autocarros brancos e azuis, seguindo o seu percurso, carregados de gente.  Chegados ao cimo da Avenida, cada um deles vira na rotunda, para um sentido diferente, rumo a um outro destino, seja ele Belas, Belém, Cascais, Oeiras, Algés ou Porto Salvo. Concluo que, no Cacém, também cada pessoa que vejo na rua tem um sentido diferente, um destino diferente, ideias diferentes, pensamentos diferentes e, por isso, esta terra é mais peculiar do que qualquer outra metrópole. O Cacém não é cosmopolita, não é limpo, não é meticuloso nem escrupuloso nem seguro, mas é único, diferente, simultaneamente urbano e rural, podendo-se ouvir mochos piar, crocitar, e grilos cricrilar, por detrás do som do trânsito e da vozearia das pessoas.
Viro, agora, para a escola, seguindo uma rua por onde descem e sobem pessoas. Normalmente, faço todo este percurso com música de fundo, tentando abafar todo o som desagradável e o ruído branco que é característico do Cacém, mas hoje quero ouvir a mistura de línguas onde se cruzam o português, o crioulo, o mandarim, o ucraniano e tantas outras que não consigo identificar. Oiço sotaques de todo o lado, de toda a Lusofonia, do Norte, do Alentejo, do Brasil, de Cabo Verde, de Angola. Antes de dizer que Lisboa, onde se veem turistas de todos os recantos do mundo, é uma cidade global, digo que também o Cacém é uma cidade global.
No Cacém, moram pessoas oriundas de todos os recantos do mundo, que interagem entre si, por isso se identificam, na multidão, milhares e milhares de histórias de vida, origens e destinos que os transeuntes partilham entre si. Qualquer deambulante pode deparar-se, na mesma rua, com um restaurante onde se vende kebab ou outro onde se vende sushi e mesmo com igrejas de diferentes religiões. Lisboa é a experiência artificial do mundo sem se sair de Portugal, o Cacém é a experiência orgânica e natural.
O que vivo no Cacém, onde a confluência se entende com a globalidade, poderia, afinal, vivê-lo em Hong Kong, Hamburgo ou Londres. Não se trata de ser todo o mundo, mas de todo o mundo ser algo em mim. Posso ir a Edimburgo, a Paris, a Genebra, mas continuarei a ver o que vi no Cacém, a pensar o que pensei no Cacém. Sair do Cacém significaria sair do Mundo, deixar de ser humano.
Agora que entro na Escola Secundária Ferreira Dias, na Rua António Nunes Sequeira, e deparo com o reabilitado edifício azul, coabitando com os pavilhões mais antigos, o campo de jogos e o pavilhão gimnodesportivo, lanço-me na corrente de jovens dos doze aos dezanove anos, com mochilas às costas, e delineio a ambição de querer partir, conhecer outras paragens e conduzir a minha vida noutros locais.  
A Finlândia e a Noruega soam-me agradáveis, acenando-me com o sabor do frio, da neve e da chuva (dizem-me, até, que não sei apreciar o clima português), e atraem-me o Japão e a China, com as suas promessas de novas aprendizagens. Sabendo eu que, muito provavelmente não irei estar no Cacém daqui a cinquenta anos, quando voltar ao Cacém, regressarei, certamente, ao meu mundo e à minha realidade. Só aí, depois de viajar por todo o mundo, saberei que poderia ter visitado todos os lugares sem sair do Cacém.
Porque, no fundo, para mim, não há lugares como o lugar a que chamamos "casa", por muito mau que ele nos pareça.




                                                                              Pedro Vilão, 12º C3

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