Hoje
é sexta-feira, faltam dez minutos para as oito da manhã e estou a caminho da
escola. Sopra um vento frio e cortante. Desço o viaduto que me separa do Cacém.
Esta rua, batizada com o nome de Luís Lázaro Zamenhof, criador do Esperanto,
tal como ele tem a intenção de juntar extremos, sendo o elo de ligação entre
dois lados.
A
ponte, pintada de vermelho, dá-me uma perfeita visão não só do IC-19 (outro
destes "elos de ligação"), por onde os carros passam, mas também de
uma boa parte dos prédios variadíssimos que compõem o cenário da cidade.
Vislumbram-se prédios velhos e escurecidos pelo tempo, mas também prédios em
melhor estado, autênticos titãs de tijolo e de betão armado. Por detrás de cada
uma das janelas, esconde-se uma vida, uma história, uma ideia, um pensamento,
memórias... As memórias de quem não conheço (por exemplo dos que se erguem no
quinto andar, por cima do Centro Comercial Satélite, ou no primeiro andar,
mesmo em frente da estação dos comboios) passam-me pela cabeça e, de repente,
imagino-me uma dessas pessoas. Os prédios têm sete, oito, nove, dez andares,
mas, para mim, é como se tivessem cento e vinte, pois o conteúdo que se oculta por
detrás das suas fachadas nunca poderá ser captado por qualquer livro, narração,
comentário ou instantâneo fotográfico.
Daqui
até ao cimo da Avenida dos Bons Amigos, a arquitetura é dominada pela
irregularidade de desenhos dos edifícios e do tipo de casas comerciais que aí
se alojam. Mercearias étnicas, pastelarias, lojas de conveniência, tabacarias,
papelarias, quiosques, cabeleireiros, oculistas, agências de viagens,
bijuterias, bazares, ourivesarias, lojas de penhores, consultórios médicos,
dentistas, prontos-a-vestir e sapatarias ladeiam as ruas da grande baixa
cacenense, desde o cimo do Mercado Municipal (agora branco, mas ainda
"amarelo" nas nossas memórias) até à área de serviço ao cimo da
Avenida dos Bons Amigos e à rotunda dos Quatro Caminhos.
Agora
que já estou junto à rotunda, passo sobre a Ribeira das Jardas, nome dado à
ribeira de Barcarena. Vejo um pato a nadar sobre a água e detenho-me na
contemplação de dois senhores de idade, sentados em bancos, frente a frente,
lendo o jornal do dia e falando sobre algo que só conseguiria compreender se
estivesse junto deles. Uma mulher empurrando um carrinho de bebé passa no
jardim, em direção à estação, contornando a rotunda que ladeia a velha ribeira.
Todos nós somos água (setenta por cento) e o Cacém é prova disso, construído
junto a esta ribeira antigamente tão importante para a economia local e agora um
belo local de passagem.
Atravesso
a estrada com o sinal vermelho (tradição nova-iorquina, embora eu more no
Cacém), pensando na maravilha de haver uma margem de erro para peões e
condutores, neste grande centro populacional com uma organizada regulação do
tráfego. Encaminho-me para a escola, por debaixo do caminho-de-ferro onde se
cruzam comboios vindos de Sintra para Lisboa ou de Lisboa para Sintra, e,
ocasionalmente, com destino para as Caldas da Rainha, Figueira da Foz, Coimbra
ou um pouco mais além.
O
Cacém, tal como a rua Luís Lázaro Zamenhof ou o IC-19, é também um elo de
ligação, neste caso entre a fantasia romântica e parada no tempo da vila de
Sintra e o resto do Mundo para onde se pode viajar a partir de Lisboa, apanhando
os seus comboios, autocarros, elétricos, aviões, paquetes e cruzeiros. Quando
passo junto à linha dos comboios, penso quão fácil é sair do Cacém e,
simultaneamente, quão difícil é expulsá-lo de mim, porque, para mim, esta
cidade é tudo.
No
fundo, também passar no Cacém é ficar e sair do Cacém. Confluência de culturas
e gerações - senhoras muito idosas à porta da papelaria, vendo as capas das
revistas e conversando, pais e mães à espera de ser atendidas no centro de
saúde, com bebés ao colo que choram sem saber porquê, jovens que veem algo no
telemóvel, distraidamente, encaminhando-se para a estação, pessoas com
auscultadores nos ouvidos, tentando abafar o ruído -, o Cacém é um caldeirão
onde todos influenciam e são influenciados, contactando, mesmo
involuntariamente, com costumes radicalmente diferentes dos seus.
Subo,
agora, a Avenida dos Bons Amigos e vejo quatro autocarros brancos e azuis, seguindo
o seu percurso, carregados de gente.
Chegados ao cimo da Avenida, cada um deles vira na rotunda, para um
sentido diferente, rumo a um outro destino, seja ele Belas, Belém, Cascais,
Oeiras, Algés ou Porto Salvo. Concluo que, no Cacém, também cada pessoa que
vejo na rua tem um sentido diferente, um destino diferente, ideias diferentes,
pensamentos diferentes e, por isso, esta terra é mais peculiar do que qualquer
outra metrópole. O Cacém não é cosmopolita, não é limpo, não é meticuloso nem
escrupuloso nem seguro, mas é único, diferente, simultaneamente urbano e rural,
podendo-se ouvir mochos piar, crocitar, e grilos cricrilar, por detrás do som
do trânsito e da vozearia das pessoas.
Viro,
agora, para a escola, seguindo uma rua por onde descem e sobem pessoas.
Normalmente, faço todo este percurso com música de fundo, tentando abafar todo
o som desagradável e o ruído branco que é característico do Cacém, mas hoje
quero ouvir a mistura de línguas onde se cruzam o português, o crioulo, o
mandarim, o ucraniano e tantas outras que não consigo identificar. Oiço
sotaques de todo o lado, de toda a Lusofonia, do Norte, do Alentejo, do Brasil,
de Cabo Verde, de Angola. Antes de dizer que Lisboa, onde se veem turistas de
todos os recantos do mundo, é uma cidade global, digo que também o Cacém é uma
cidade global.
No
Cacém, moram pessoas oriundas de todos os recantos do mundo, que interagem entre
si, por isso se identificam, na multidão, milhares e milhares de histórias de
vida, origens e destinos que os transeuntes partilham entre si. Qualquer
deambulante pode deparar-se, na mesma rua, com um restaurante onde se vende kebab ou outro onde se vende sushi e mesmo com igrejas de diferentes
religiões. Lisboa é a experiência artificial do mundo sem se sair de Portugal,
o Cacém é a experiência orgânica e natural.
O
que vivo no Cacém, onde a confluência se entende com a globalidade, poderia,
afinal, vivê-lo em Hong Kong, Hamburgo ou Londres. Não se trata de ser todo o
mundo, mas de todo o mundo ser algo em mim. Posso ir a Edimburgo, a Paris, a
Genebra, mas continuarei a ver o que vi no Cacém, a pensar o que pensei no
Cacém. Sair do Cacém significaria sair do Mundo, deixar de ser humano.
Agora
que entro na Escola Secundária Ferreira Dias, na Rua António Nunes Sequeira, e
deparo com o reabilitado edifício azul, coabitando com os pavilhões mais
antigos, o campo de jogos e o pavilhão gimnodesportivo, lanço-me na corrente de
jovens dos doze aos dezanove anos, com mochilas às costas, e delineio a ambição
de querer partir, conhecer outras paragens e conduzir a minha vida noutros
locais.
A
Finlândia e a Noruega soam-me agradáveis, acenando-me com o sabor do frio, da
neve e da chuva (dizem-me, até, que não sei apreciar o clima português), e
atraem-me o Japão e a China, com as suas promessas de novas aprendizagens.
Sabendo eu que, muito provavelmente não irei estar no Cacém daqui a cinquenta
anos, quando voltar ao Cacém, regressarei, certamente, ao meu mundo e à minha
realidade. Só aí, depois de viajar por todo o mundo, saberei que poderia ter
visitado todos os lugares sem sair do Cacém.
Porque, no fundo, para
mim, não há lugares como o lugar a que chamamos "casa", por muito mau
que ele nos pareça.
Pedro Vilão, 12º C3